sexta-feira, 7 de março de 2008

Carolina no jardim

A casa da avó São e do avô Jorge tem à frente um grande jardim. Pelo menos a Carolina, que ainda não fez três anos, acha-o muito grande. Como só tem relva e algumas árvores e arbustos, pode correr por lá à vontade, dar saltos, rebolar-se e, o mais difícil de tudo - tão difícil que, das primeiras vezes, até mereceu palmas - dar cambalhotas.
A Carolina só pode ir para o jardim fazer isto quando está sol e a relva seca, se não a avó e o avô não deixam. Quando chove é muito aborrecido, porque a relva fica toda molhada e lá se vão os pinotes e as cambalhotas.
- Vês? Esteve a chover. A relva está molhada. Hoje temos de brincar cá dentro.
Mas quando está solzinho, que bom!
- A relva não está molhada? - pergunta a Carolina, espreitando pela janela do escritório, que dá para o jardim.
- Não, hoje está sol.
- Então podemos ir para o jardim?
- Podemos. Mas tens de levar o chapéu.
No jardim, o chapéu não serve só para tapar a cabeça. Também serve para brincar. A Carolina pega nele e atira-o para longe. Depois corre, aos guinchos, para chegar primeiro que a avó e o avô. E chega sempre primeiro - quase sempre.
Mas não é só a Carolina que gosta do jardim. De há uns tempos para cá, há também uns gatos da vizinhança que gostam. Mas por outras razões. Os gatos não vão para lá brincar, vão deixar uns presentinhos espalhados pela relva, que cheiram muito mal. Por isso, agora, antes de a Carolina ir para o jardim, o avô Jorge avisa sempre:
- Espera aí, que eu vou ver se há cocó de gato.
E o avô Jorge lá se põe a andar por cima da relva, curvado, a ver se descobre presentinhos dos gatos.
- Tem cocó de gato, avô? - pergunta a Carolina, enquanto espera que o avô acabe a inspecção.
E às vezes tem.
Pela cara, parece que o avô não gosta nada destes presentes. Mas é só até a Carolina poder começar a correr na relva e a dar pinotes. Depois, a cara do avô parece que fica outra vez cheia de sol.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Adivinha

Eu sei de uma menina
com olhos cor de azeitona
inundados de luar.
Será que isto já chega
p'ra poderes adivinhar?

Eu bem queria saber,
mas ainda não sei, não.
Ai, se me deres uma ajuda,
talvez adivinhe então.

Eu sei de uma menina
com olhos cor de azeitona
inquietos como o mar.
Será que isto já chega
p'ra poderes adivinhar?

Eu bem queria saber,
mas ainda não sei, não.
Ai, se me deres uma ajuda,
talvez adivinhe então.

Eu sei de uma menina
com cabelos cor de Maio
que o vento mexe ao passar.
Será que isto já chega
p'ra poderes adivinhar?

Eu bem queria saber,
mas ainda não sei, não.
Ai, se me deres uma ajuda,
talvez adivinhe então.

Eu sei de uma menina
que tem o sol no sorriso
com que nos sabe encantar.
Será que isto já chega
p'ra poderes adivinhar?

Eu bem queria saber,
mas ainda não sei, não.
Ai, se me deres uma ajuda,
talvez adivinhe então.

Eu sei de uma menina
mas não o digo a ninguém,
é um segredo só meu,
vou guardá-lo muito bem.

Avô Jorge

domingo, 27 de janeiro de 2008

Folhas de Outono

O avô tem andado bastante preguiçoso quanto a escrever para ti.
Embora passe muito tempo
(quase todo o tempo)
a querer-te

(como hei-de dizer, se não encontro palavras)
há outras coisas que um avô
(este avô, pelo menos)
tem que fazer, gosta de fazer

(para além das trivialidades e rotinas do dia a dia, que ocupam o seu tempo, não penses que não)
e por isso, muitas vezes, sobra pouco para te dedicar algumas linhas, mesmo sobre pequenas coisas, insignificâncias,
como há tempos no jardim, Novembro ou Dezembro, quando te perguntei
- Que folhas são estas?
umas folhas de magnólia sobre a relva, de um macio castanho dourado
e tu me respondeste
- São folhas de Outono.
Quem poderia dar uma resposta mais bonita?

Avô Jorge

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Solzinho

Mesmo com o tempo benigno como tem estado
solzinho, céu sem uma nuvem, as cores do Outono imóveis nas árvores
Novembro é Novembro, dias pequenos

ainda agora saí da escolinha e já tudo é quase uma penumbra
- Já não há sol, avó

de modo que quando chegamos a casa
hoje a casa é a da avó São e do avô Jorge
o baloiço não passa de uma mancha vaga debaixo do alpendre e por isso
estava-se mesmo a ver
- Baloiço agora não, já é noite e está frio
- Mas eu quero
- Agora não, podes constipar-te, amanhã
e amanhã é sábado, vou ficar todo o dia em casa da avó São e do avô Jorge, e no domingo também, e então sim, como vai estar sol
só pode estar sol
vou mesmo andar no baloiço

não comecem logo com essas coisas de frio e constipações
- Está solzinho, avó
e assim foi, o solzinho veio, amornou o ar
e aí vou eu
- Com força, avô
enquanto o avô vai imaginando mais umas toadas para ti.


SOLZINHO

O baloiço não pára
o ar está frio
e roça-me a cara
num arrepio.

Roça-me a cara
num arrepio
e o baloiço não pára
Oh que ar tão frio.

Roça-me a cara
roça-me os pés
e o baloiço não pára
Ó sol, tu não vês?

Oh que ar tão frio
e o baloiço a pender
vou chamar o sol
para me aquecer.

Sol
solzinho
muito quentinho
vem cá abaixo
aquecer
os meus pezinhos.


Avô Jorge

sábado, 27 de outubro de 2007

Lengalenga para encurtar a eternidade


Há uma eternidade
(uma semana)
que estás longe
- Estou na Madeira, avô
a suavizar à mamã
- Estou com a mamã e a avó Tita
as eternidades da tua ausência.
Agora é a nossa vez de contarmos os dias desde que te foste embora, um dois, três, quatro, cinco, seis
ou ao contrário, os dias que faltam até voltares, doze, onze, dez, nove, oito, sete.
Tu sabes que de certo modo estás sempre connosco
(dói-nos a tua falta e essa dor é uma forma de estar contigo)
e nós sabemos também que nos tens ao pé de ti
- Quero dormir em casa da avó São
mesmo com um mar pelo meio.
Mas apesar de tudo há um mar pelo meio, há uma eternidade que estás
- Estou na Madeira, avô
de modo que, para encurtar um pouco essa eternidade, vou sentar-te nas minhas pernas
(já percebi, preferes o colo da avó, estava só a tentar)
sentas-te nas pernas da avó, aqui no escritório, o sítio das histórias e das músicas, para ouvires uma lengalenga que fiz para ti.

LENGALENGA DOS FRUTOS

Morango vermelho
quem te corou?
Foi o sol
o solzinho
que aqui passou.

Cereja rosada
quem te rosou?
Foi o ar quentinho
da Primavera
que me embalou.

Amora madura
quem te escureceu?
Foi a mão do sol
que todo o Verão
me aqueceu.

Romã cor de fogo
quem te afogueou?
Foi a luz
a luz de Setembro
que me beijou.


Avô Jorge

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Lengalenga do vento


Há uma lengalenga, sabes
- Se me contares, avô, fico a saber
- Sim, eu conto
A Lengalenga do Vento, de uma escritora chamada Maria Alberta Menéres.
O avô sempre gostou dessa lengalenga e enquanto andou na escola
não em pequeno, que então na escola não se perdia tempo com lengalengas
não em pequeno, muitos anos depois noutra escola
(a bem dizer, Carolina, o avô passou a vida na escola
tantos anos na escola
primeiro do lado dos meninos, a achar que os professores
uns velhos difíceis de aturar
queriam que aprendêssemos coisas muito aborrecidas que nós achávamos que não serviam para nada, embora estivessem sempre a dizer-nos que eram muito importantes
depois do lado dos professores a achar precisamente o contrário, a achar que as coisas que tínhamos para ensinar eram mesmo importantes embora os meninos
difíceis de aturar os meninos
não quisessem saber disso para nada)
- Já te perdeste na conversa, avô
- Não perdi não, Carolina, estava a falar da Lengalenga do Vento, estava a dizer
ia dizer
que muitos anos depois, noutra escola, o avô gostava de tentar que os meninos se encantassem com a Lengalenga do Vento
Senhor vento, que força
o avô gostava de tentar que os meninos se encantassem, que os meninos se encantassem
como espero que um dia te encantes
um pouco que seja
com esta outra Lengalenga do Vento
a do avô Jorge.


Lengalenga do Vento

Andava o senhor vento
um dia pelo mar
encontrou um barquinho:
- Senhor vento, que força!
Olhe que me vai afundar!

Andava o senhor vento
correndo pelo pinhal
quando ouviu um cuco:
- Senhor vento, que força!
Não me faça mal...

Andava o senhor vento
soprando sobre o rio
encontrou uma gaivota:
- Senhor vento, que força!
Faz-me tanto frio!

Andava o senhor vento
a deslizar sobre a neve
quando ouviu um floco:
- Senhor vento, que força!
Sinto-me tão leve!

Andava o senhor vento
passeando no mês de Maio
quando ouviu um menino:
- Senhor vento, que bom!
Lá vai o meu papagaio!


Avô Jorge

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O vento


De entre as histórias que costumas arrancar das prateleiras da estante, quando estás em maré de leitura
O que é que pensas, avô?, as letras ainda não sei ler, mas as figuras sei muito bem, e até gosto de pegar numa esferográfica e acrescentar uns riscos da minha autoria, percebe-se pela vossa cara que não gostam que eu faça isso
- Não risques o livro, Carolina
mas eu acho que os desenhos ficam muito mais bonitos assim
de entre as histórias, então, que costumas arrancar das prateleiras da estante há uma que te merece sempre um interesse especial
O Vento
publicada em Novembro de 1976
(consegues imaginar essa eternidade?)
tinha o papá só uns meses.
A avó São já me mostrou algumas fotografias do papá mais ou menos com essa idade, a avó São diz que é o papá, e se me perguntam quem é o bebé que está nas fotografias eu faço o jeito
- É o papá
mas acho que não é nada o papá, o papá é grande, tem barba e óculos, como é que aquele pequenino
muito mais pequenino do que eu
enchouriçado em fraldas e roupas pode ser o papá?

Pousas O Vento no sofá e pões-te a folheá-lo
A lê-lo, avô, já te expliquei
e pões-te a lê-lo com muita atenção, tirando dúvidas com a avó
- O que é isto?
outras vezes explicando tu à avó
- Os meninos estão na praia
a avó
- Pois estão, e o vento, já viste, levantou o papagaio de papel daquele menino
e tu outra vez a explicar
- Olha, avó, a areia, o mar
cada página com coisas vistas e revistas
(o vento do Outono levando as folhas das árvores e os gorros dos meninos, no Verão erguendo no céu as cores dos papagaios de papel, o vento do Inverno virando os guarda-chuvas, o da Primavera passando ao de leve a mão no rosto das flores)
mas sempre novas
porque as coisas, avô, não deixam de ser novas por já as termos visto, é só olhá-las como se fosse a primeira vez.

Avô Jorge